terça-feira, 30 de setembro de 2008



Do exterior para o interior...para o teu quarto.





















As minhas visitas ao hospital, são cada vez mais frequentes, há pelo menos 19 dias que ando nesta rotina.
Aos poucos, vou começando a integrar este trajecto, todos os dias, o caminho até lá, o átrio cheio de gente que chega, que parte, mas sobretudo que espera, os espaços, o mesmo corredor, o elevador, o corredor de novo, e por fim o quarto, a cama, o meu pai, o beijo na testa, o sorriso, e a pergunta: "Como te sentes hoje?"


Aquele quarto,vai-se tornando numa pequena comunidade, onde já nos conhecemos, inclusivé as visitas dos outros doentes.Há ali um sentimento de compreensão.Pois todos eles, com problemas diferentes, sofrem e estão ali fechados.


Já sei um pouco da história de cada um, e há de tudo.


Na cama 1, está um senhor, de 73 anos, a que tem dois dedos do pé negros, os dedos estão mortos, não mexem, não doem, nada, como é diabético pensam cortar-lhe os dedos.O homem está numa aflição tal, que só fala nisso.


Na cama 2, o mesmo quadro, diabético, não fala, dorme sentado, com as pernas penduradas para fora da cama, sem se encostar a lado nenhum, nunca recebe visitas, pelo menos quando lá estou, e tem um pé ligado, que será para cortar.Mas ele tem um olhar, curioso, apesar de não dizer uma palavra, olha muito para nós e observa tudo.Sinto ali um certo abandono...


Na cama 3, um senhor da idade do meu pai,com o mesmo problema de base, que o meu pai, cancro do cólon.Também vítima de um hospital que deixou andar, se fosse assistido a tempo, estava bem melhor.
Ele está sempre acompanhado pela mulher e pela filha, que fazem tudo ao pé dele, quando ele come, elas também comem, para lhe fazer companhia, quando ele vai á casa de banho, fazem-lhe a cama, ajeitam-lhe as coisas, com imenso cuidado.Hoje vi uma cena, entre esta família, que me impressionou muito, ele estava cheio de dores, contorcia-se na cama, e elas uma de cada lado, agarravam-lhe nas mãos, e ele chorava em silêncio, mas podia ver-lhe as lágrimas a cair, a certa altura a filha tira da gaveta, uma pequena cruz de madeira, e mete-lhe na mão e fecha-a.E ali ficaram, até que a enfermeira viesse dar medicação para as dores.Com ele.


Na cama 4, um senhor muito idoso,muito magrinho, mas muito engraçado, do mais cómico que há,na cama junto á janela, ali está, com as suas expressões únicas, todas as enfermeiras gostam imenso dele, o seu problema não sei qual é, mas quando precisa de alguma coisa, seja levantar a cama, seja beber água, eu que estou ali, vou lá e depois agradece sem fim, dizendo: "Muito obrigado, muito obrigado, obrigadissímo, Muito mas muito obrigado, linda menina."Mas tantas vezes, que já eu me sentei junto do meu pai, e ele ainda está a agradecer.Começo a rir-me como toda a gente, porque depois ele fica a cantar baixinho, olhando para a janela.


Na cama 5, um senhor Africano, que era engenheiro civil, fala muito da sua terra, Angola, tem o mesmo problema que o meu pai, mas já foi operado, está a recuperar, dorme a maior parte do tempo, quando recebe visitas, continua a dormitar, não se importando com elas.


Na cama 6, o meu pai.


E não sei bem o que dizer.É o meu pai.


E imaginá-lo ali,falar dele ali, é sempre estranho...o cenário dele, seria mais uma planicíe alentejana, extensa, e doirada...
Ele passa o tempo, de barriga para cima, destapado, olhando muito para o tecto, para longe, faz-me perguntas sobre casa, sobre mim, sobre a vida que corre lá fora, consigo por vezes arrancar-lhe o riso, mas a preocupação que sente, não o deixa prolongar esse mesmo riso.
Conta-me como foi a noite, e quando chega a hora do jantar, custa-me muito estar ali, pois ele não come e não bebe, devido á sonda que está a limpar o sistema.Mas o cheiro da comida invade o quarto.Nós quando não comemos umas horas, ficamos com dores de estômago, eu não quero pensar 7 dias.
A sonda é para ele a sua maior "inimiga", implica muito com ela, pois aleija o nariz e a garganta, e todos os dias me diz, que amanhã é que vão tirar aquilo dali e vai começar a dieta líquida.Mas enquanto a sonda não estiver limpa, não a podem tirar.Mas eu vou-lhe dizendo que tem que ter um pouco mais de paciência, que depois aos poucos vai voltar a comer...e ficar forte, para se poder tratar.Que vai correr tudo bem, que tem que ser ele a querer.


Acaba a visita, e chega para mim o momento mais duro, deixá-lo.
Ás vezes só me apetece voltar atrás...na janela grande do corredor central o sol põe-se lá ao fundo, por trás da serra de Sintra, e eu vou-me lembrando que há sítios tão melhores para o ver pôr-se...mas ali também tem a sua beleza, também conta e há-de marcar.


E assim, se vão passando os dias, sei que o que tenho escrito estes dias, tem sido meio cinzento e são situações em que não há muito a dizer.


Apenas confiar.


É o que fazem as pessoas daquele quarto, daquele hospital, de outros quartos que não sei, de muitos hospitais...do País e do mundo.


Eu também confio, e sei que melhores dias virão, por agora vivo estes, um de cada vez.









(Queria ter uma varinha de condão e curar o meu pai.Tenho uma, que espalha amor, ajuda, mas não chega.
Alguém sabe onde se arranjam aquelas que curam?)





5 comentários:

mfc disse...

Essas rotinas tornam-se num calvário, que por estranho que pareça não queremos (nem podemos...) largar!

Peregrina disse...

Daqui de onde o mar abraça a terra (Peniche) envio um imenso raio de sol para iluminar esse quarto que quase consegui ver os rostos dos que o ocupam!
Mais uma vez gostei muito de a ler.
Bjs
Anita

silvia disse...

Acho que essas varinhas de condão ainda não se fabricam... mas, quando não se desiste de fazer o que está verdadeiramente ao alcance... isso é já algo grande, ainda que possa parecer muito pequeno, invisível até... é um pouco semelhante ao grão de areia,quase não se vê... mas uma casa tem milhões deles... e nem nos lembramos... cada visita ao hospital é um grão de areia. Parece que não é nada, parece que nada altera... mas, de certeza que quando consegues arrancar um sorriso ao teu pai, seguramente que para ele isso é maior do que qualquer varinha de condão possa fazer. Coragem e confiança! Alguém algures te sustenta com uma mão e te proteje com outra... e nessa mão também cabe aqueles que amas.

Migalhas disse...

Só existe uma varinha de condão. E chama-se AMOR. E é isso que tu tens! Essa varinha de condão cura tudo; ainda que nos pareça que não. Muitas vezes, uma 'cura' física não é tudo. A 'cura' pode ser muito mais profunda que uma simples cura física. E essa tal varinha de condão cura o doente e aqueles que o rodeiam.
Sei que fiz um 'sermão'; mas sei que a tua dor é muito profunda. Imagino as tuas sensações, as angústias nas tuas 'entranhas', as tuas noites cheias de 'fantasmas', o teu tactear sem encontrar o 'corrimão' onde te possas apoiar, o teu 'boa noite', ao deitar, sem teres o rosto onde possas depositar um beijo...
Estou contigo

NRF disse...

Amiga força, sabes que eu tou contigo, mesmo não estando físicamente, espiritualmente estou... e peço por ti e pelo teu Pai... vai correr td bem, sempre foram estas as tuas palavras... e sempre correu tudo bem.... é a melhor lição que posso tirar... beijos e força* não é fácil....