segunda-feira, 5 de maio de 2008

Para Sempre






Esta noite sonhei contigo.
Hoje se fosses viva, terias Oitenta e oito anos.
Mas, olha, tens à mesma, porque eu quero e porque mereces.
Eras gulosa pela vida e dizias as piadas meio toscas fora de contexto porque os teus ouvidos te enganavam constantemente. Mas eu ria-me contigo e para ti e nunca de ti. Há quem diga que herdei o teu jeito de encarar as coisas com uma piada. Talvez sim.
Sabes, às vezes sentia o teu orgulho a atravessar-me pelo peito e a caminhar em direcção ao coração. Mas bem devagarinho, porque te doía as pernas. E o teu coração deixou de querer bater, não foi?Mas mais que o teu coração foi essa doença que nos tocou um dia.
Dizias-me muitas vezes «Estou cansada, filha». E suspiravas e focavas o horizonte como se olhasses a primeira página de um livro que nunca aprendeste a ler.
Espero que o teu coração não se tenha cansado das carícias que eu lhe pintava através do teu rosto e que coloriam também o teu cabelo grisalho. Naquela cama de hospital, que me parecia branca demais, disse-te adeus naquele final de tarde, apesar de não querer, sabendo que seria a última vez, era eu uma criança, como pude senti-lo não sei? Mas acho que foi a tua vontade.
Tal como sempre andavas.Vestida de preto, andar torto, porque a vida de trabalho nem sempre foi fácil. Andavas mais de uma hora todos os dias para ir trabalhar e, talvez por isso, tenhas moldado a tua figura à forma que as circunstâncias deixavam.
Querias sempre mais um beijinho e mais um abraço. Eras calma e calada e adoravas a minha inquietude, as minhas palavras em alto e bom som. Eu queria que tu me ouvisses. E tu chamavas-me "tonta" em jeito de elogio, eu sei. E tu querias ouvir-me.Iamos ao jardim e tu compravas ervilhanas...e pipocas e ficavas a ver-nos brincar.E tantas vezes rangias os dentes...e nós riamos, e fazia-nos arrepiar...
Quando regresso ao Alentejo, vejo-te por todo o lado...oiço-te e consigo sentir-te.




Não gosto de missas de comemoração de morte, acho que sabes disso. Prefiro celebrar a tua vida com breves episódios durante o meu dia e à hora da refeição, quando se junta a família e me sento no teu lugar de sempre começo as frases com: «Lembram-se quando a avô...?» e os sorrisos nascem imediatamente nos lábios de todos.
É assim que vives em nós.






Hoje tiveste tão presente no meu pensamento, terias algo para me mostrar querida Avó?

2 comentários:

Tantra disse...

Claro que sim, que a avó chica nos teria muito para ensianar com o seu jeito meio provinciano. Recatada era a sua maneira. E teimosa a sua caractristica! Lembro-me também de muitos momentos passados com esta minha "mãe". Dias passados a equerer-me ensinar as poucas letras do abecedário que sabia, as brincadeiras em que ela fazia de toureiro com o xaile sentada no sofá e eu no chão de gatas fazia de touro. lembro-me quando te protegi quando adoeceste... e lembro-me de sempre me lembrar de ti e nunca te ter esquecido dento de mim... jamais se esquece quem vivamente viveu em nós. E tu avó linda.. és e sempre estarás connosco. com estes teus netos que tanto prezavas...
PS - obrigado pelas cuecas que me davas TODO O SANTO NATAL... LOL. Na altura ria-me... hoje riu-me por já n haver quem dê cuecas!!!!
Tenho saudades e muitas...

Maga Medéia disse...

Querida avó Chica que me desalojava da minha cama e me punha 3 a 6 meses a dormir no sofá da sala...foram esses tempos que permitiram que pudesse experimentar a experiência de viver contigo e de aprender coisas do campo que o resto da família não podia ensinar...saber histórias da guerra de Espanha e como fugiu o bisavô...saber que tinha um tio-avô inteligente e incompreendido para a época, saber as estações e fases da lua e como todas as energias influenciam tudo. Lembro-me tão bem desses dias no jardim quando compravas ervilhanas para nós e mais ninguém sabia o que são e os riamos...e do dia em que cheguei da praia e já cá não estavas!Foste como um passarinho mas continuas cá perto de nós, uns dias por aqui e outros pairando sobre o teu querido Guadiana, agora transformado num lago que emerge os campos da tua juventude!
De certeza que os que continuam connosco nos falam. Se vivamente a recordamos é porque vela por nós!