sábado, 28 de julho de 2007

Confissões X - Mon petit-ami



Foi no Verão em que completei 9 anos que me apaixonei pela primeira vez por um rapazito próximo de mim e de carne e osso.
Antes dele, as minhas inclinações tinham como alvo cantores, actores bonitos e também rapazes imaginários ou então verdadeiros, mas com vinte anos.
Geralmente eram amigos dos meus primos Tito e Luís que em inter-rail, paravam em Lisboa na casa da minha avó, enchiam a casa de 15 jovens de mochila ás costas, todos Madeirenses, e aquilo fascinava-me.
Iam juntos, percorrer a Europa...e a escala era em Lisboa, na casa da avó Glória.

Morávamos em Lisboa e costumávamos passar as férias no Alentejo, por causa das raizes do meu pai, que existem ainda e sempre, numa vila de nome Mourão.
Ao fim de semana os meus primos vinham juntar-se-nos e era uma alegria.Peixe assado, os cães da minha tia, um deles o batata, que eu adorava...
O quintal da minha tia...era assim um mundo.Um mundo onde cresci...e fui tão feliz.
E eu, ia e vinha para o rio Guadiana, onde aprendi a nadar, e onde passava horas...sob o olhar atento da Avó Chica, com os pés de molho, por causa dos calos, vestida de preto, naquele calor do Alentejo, mas o luto era mais forte.

Íamos para o rio de manhã cedinho, regressávamos a casa nas horas de calor, almoçávamos, todos dormiam a sesta e eu brincava lá fora onde tinha muito espaço, pois estávamos isolados no meio de um monte junto ao Rio, onde haviam mais cerca de 10 0u 15 casas, um espaço belo, com uma capela pequenina, onde eu tinha permissão para andar à vontade.
Só voltávamos para o rio por volta das cinco horas, de modo que eu, assim que almoçava, ia brincar lá para fora.
Era encantador, aqueles montes arenosos e com oliveiras inclinadas para o rio...foram nesses anos que me apixonei pelo campo...

À sombra dos sobreiros brincavam outros miúdos como eu.
Claro que, com a minha queda natural para as complicações, caí para o lado com um francesito que não falava uma palavra de português.
Eu também não percebia patavina de francês.
Num aprés-midi, andava eu a cantar e a apanhar joaninhas - havia imensas! - que depois deixava passear pelos braços acima, quando ouvi uma palavra qualquer, assim dita a medo e rir.
Voltei-me, vi um miúdo muito loiro, giríssimo, e... BUM!, o meu coração deu um grande salto sob aquele intenso olhar azul e os lábios invulgarmente grossos, que sorriam para mim.
Eu também era uma menina interessante, gorducha,de longos caracóis, olhos vivos...mas naquele instante senti-me tão pequenina.
Não sei o que lhe respondi que o fez acentuar o sorriso.
Eu perdi a fala e as joaninhas, que devem ter voado. Ele desatou a dizer palavras que não entendi e também nomes, enquanto fazia gestos.
Percebi apenas que se chamava Philipe, era francês e morava provisóriamente numa das casas daquele lugar. Estaria de férias...como eu.
Lá lhe disse o nome, a nacionalidade (!) e apontei para a casa da minha tia, ao longe.

Num instante instalou-se entre nós uma doce forma de comunicar, sorrindo, apontando coisas cujo nome um de nós dizia e o outro repetia.
Também faziam parte os olhares sempre muito intensos e por vezes dizíamos longas frases... e desatávamos os dois a rir perdidamente, encolhendo os ombros, pois era óbvio que não nos fazíamos entender, nem nos ralávamos com isso.
Nesse dia fiquei muito contrariada por ter de voltar para o rio com toda a gente por volta das 17h...e lá fui.
Fui com o coração em sobressalto, e desejando voltar a vê-lo, contando até os dias que me restavam para regressar a Lisboa...
Mas depois, à hora do banho no rio, perto da hora do jantar, em que já só ficava eu, os meus primos e a minha avó... precisamente quando me levantei de um valente mergulho, de que imediatamente me orgulhei, dei de caras com aquele sorriso azul que já quase me parecia ter sido apenas um sonho... mas estava ali a provar o contrário.
Senti-me maravilhada e também muito intimidada. Ele estava realmente ali. Muito próximo.
De repente percebi que ia ser assim durante as férias todas.
Sentia uma coisa que, não me sendo estranha, assumia proporções novas, de algo com que nunca antes tinha lidado.
Nunca tinha escutado a respiração, nem tocado nas mãos, nem visto pulsar perto de mim o corpo vivo de um rapaz que me despertasse amor.
E, de uma certa forma, fugi.
Tal como eu previra, tornamo-nos inseparáveis.
Passávamos os dias juntos, a brincar, a rir, a dizer muitas coisas de que apenas entendíamos menos de metade.
Ele fazia-me cantar, como no primeiro dia quando me interrompeu, e tentava imitar-me o que me fazia rir até às lágrimas e a ele também.
Eu só pensava em estar pertinho dele e sentia-me adorada.
Mas se as nossas mãos se tocavam, mesmo que casualmente, ao fazer construções de seixos lisos do rio, a minha saltava imediatamente para longe com um gesto vivo.
Eu sabia que ele sentia a barreira construída por mim, afinal ele ia partir para longe, lia-lho no olhar que me perscrutava, enchendo-se de confusão e de sombras.
Às vezes notava-lhe uma vaga tristesse... e isso produzia em mim um ataque de ternura tão dolorosa que me apetecia colar os lábios aos dele... assim de raspão... ou com muita força.
Para afastar tais ideias, voltava-lhe as costas de rompante, gritando "tenho que ir!" e corria para junto dos meus, se estivesse no rio, ou para dentro de casa, se estivéssemos no quintal.
Depois ficava com medo de o ter perdido e voltava.
Era sempre recebida com o mesmo olhar imensamente azul que me envolvia num halo de amor e o sorriso de boas vindas nos lábios grossos.

Um dia, logo pela manhã, saí de casa e, como sempre, olhei para as casas brancas e imaculadas, para as janelas do Philipe. Estavam todas escancaradas.
Procurei o carro e a roulotte - que tinham ficado as férias inteirinhas parados no mesmo lugar - e constatei que tinham desaparecido.

Ele partira!

E partira sem saber que fora correspondido, que também eu o amava. Nunca mais o veria. Nunca mais lhe podia dizer "salut!" - como ele me ensinou.
Nunca mais o ouviria a dizer-me "ôlá!" - com aquele sotaque que eu tentava corrigir em vão.

A minha reacção foi atravessar o pedaço que separava as nossas casas e entrar na dele.
Não procurava nada esquecido - nunca fui de tolices dessas! - queria apenas respirar um restinho de Philipe.
Percorri a casa, séria, sem me deter especialmente em nenhuma das poucas divisões.
Talvez tivesse tentado adivinhar onde ele dormira, não me lembro.

Lembro-me da pequena gota de sangue no chão, quase à saída. Tive a certeza que era dele.
Hoje essa certeza faz-me sorrir.
Não que duvide, até acredito bastante nessas intuições súbitas... mas eu era tão pequenita!
Toquei-lhe com a pontinha do indicador, num afago que pretendia repor um bocadinho da proximidade perdida... e saí.
Estava mais triste por lhe ter escondido o que sentia, do que por ele se ter ido embora.

Hoje uma situação semelhante poderia causar um grande sofrimento, mas quando se tem 9 anos estas coisas resolvem-se com muito maior simplicidade.
Com o coração apertado, mantive-me nas imediações da casa do Philipe e, de repente, ouvi assobiar.

Vi que era um dos trolhas que trabalhavam por ali em arranjos ás casas.Tinha um ar simpático, lembro-me que achei que ele tinha quarenta anos (mas às tantas tinha vinte e cinco!).
Fui ter com ele, que estava agachado a mexer numa papa de cal. Fiquei uns momentos enfeitiçada a olhar para aquilo até que ele deu por mim e parou de assobiar.
Cumprimentou-me e fez-me a típica pergunta, em sotaque alentejano:"Então míuda és filha de queeeem?" Dessa vez não me importei.

Disse-lhe quem era...perguntei o que estava a fazer?

Depois ganhei coragem. Respirei fundo e ao fim de todo aquele tempo - quase um mês! - finalmente declarei-me:



- O senhor sabe quem é o Philipe?

- O Filipe?!

- Sim. Aquele menino francês que morava ali - e apontei.


- Ah, sim, o lourinho! Sei, sei.


- Eu gostava dele, sabe?


O homem olhou-me admiradíssimo mas eu tinha que dizer tudo, por isso não me deixei intimidar e continuei:


- Gostava mesmo muito dele, assim com amor de namorados. Mas ele não sabia e agora foi-se embora.


Dito isto, acrescentei um rápido "adeus!" e voltei para casa muito aliviada!...




(Isto conto hoje, assim, com um sabor doce na boca, porque quando somos crianças tudo é tão simples...
Tive que o contar aquele trolha, quando nunca o contei a niguém, alguém tinha que guardar este segredo comigo...
Desde nova, que sempre tive a necessidade de expôr ao mundo o que sentia...
Se hoje o encontrasse, penso que o reconheceria...e talvez lhe dissesse tudo o que senti, que agora já sei perceber Francês, mas preferia nunca o ter aprendido, talvez reacendesse este amor...mais puro, que qualquer outro que senti.
Porque não era precéptivel, e quando as coisas se tornam demasiado óbvias, perdem o encanto...)

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